Todo mundo admira a lendária neutralidade da Suíça, que se permitiu
passar ilesa pelas duas guerras mundiais que devastaram a Europa no
século passado. Injustamente, porém, quase ninguém conhece a histórica
altivez da Finlândia, que rechaçou pelas armas dois poderosos invasores,
os soviéticos e os nazistas - conseguindo também atravessar a Guerra
Fria sem aderir ideologicamente a nenhum dos lados que, entre 1947 e
1991, polarizaram o mundo entre comunismo e capitalismo. Na canção Let's Do It,
de Cole Porter, os finlandeses aparecem só depois dos pássaros, das
pulgas, dos lituanos, espanhóis e holandeses em sua hipnótica lista de
seres que se apaixonam na primavera. Mesmo tendo dado ao mundo o
escorredor de pratos e os celulares Nokia, o destino da Finlândia não é
ser famosa. Assim, a revolução educacional gestada nas escolas de lá
está silenciosamente lançando as bases da educação que vai ajudar a
moldar o ensino em todo o mundo no decorrer do século XXI. VEJA foi a
Helsinque testemunhar essa saga, narrada em detalhes nas páginas
seguintes desta reportagem.
Crianças ora hipnotizadas pela tela do computador, bem à vontade só
de meias, ora ao ar livre e gelado, dissecando a geologia de uma
paisagem que tem como marco uma sólida rocha encravada entre os
pinheiros, como se fosse um parque temático sobre a era glacial.
Bem-vindo à Finlândia, o país que se notabilizou como um dos melhores do
mundo na educação, mas que, mesmo assim, já finca os pilares do ensino
do futuro. Fale com qualquer professor de lá, da 1ª série à
universidade, e ouvirá, como uma bem orquestrada sinfonia de Sibelius, o
grande compositor finlandês, orgulho nacional: precisamos de uma escola
que leve os alunos ao limite de suas potencialidades, que os prepare
para um mundo cada vez mais globalizado e os ensine a se adaptar ao
novo, a se virar diante do inesperado, a criar e a inovar. Que a lição
se faça ouvir por aqui, onde agora se debate justamente o primeiro
currículo escolar brasileiro.
Nenhum país que tem a educação como prioridade está alheio à
discussão que inflama as rodas especializadas e afeta a vida de pais e
estudantes: o que ensinar a crianças que não necessitam mais do saber
enciclopédico, já que têm acesso a informação de qualidade ao toque do
mouse, mas devem ser talhadas para enfrentar problemas e ofícios que nem
sequer se imagina quais serão? "Mais do que acumular dados, o aluno
precisa aprender a aprender, porque a toda hora surge um conhecimento
novo e relevante no planeta", resumiu a VEJA o físico alemão Andreas
Schleicher, diretor da área de educação na OCDE (organização que reúne
as nações mais desenvolvidas). No fim do ano passado, líderes de toda
parte encontraram-se em Genebra para falar do currículo do século XXI.
Houve consenso de que é preciso preservar os conteúdos essenciais, ter
coragem para eliminar o resto e dar lugar na escola ao desenvolvimento
de habilidades requeridas no mercado de trabalho, como resiliência,
capacidade de produzir em equipe, comunicação, abertura ao risco,
criatividade. A Finlândia forçou ainda mais a barra e decidiu tornar
menos estanques as divisões entre as matérias, ensinando-as muitas vezes
ao mesmo tempo. A ousadia, vinda do país que lidera rankings mundiais
de ensino, ocupou as manchetes. Seria o começo do fim das disciplinas?
"Os conceitos básicos de cada matéria continuarão a ser ensinados com
metas claras e elevadas, ainda que as fronteiras entre elas fiquem mais
flexíveis", garante Leena Maija Niemi, 42 anos, vice-diretora da escola
Kasavuori, a meia hora da capital, Helsinque, espécie de laboratório
dos novos tempos plantado em meio à floresta. Ali, vê-se uma mescla de
economia, geografia, história, demografia, estudos sociais e finlandês
num projeto chamado Minhas Raízes, um dos vários em curso, em que cada
adolescente produz vasto material sobre a cidade de seus pais, avós ou
tios. Nessa abordagem de "aprendizado baseado em projetos", professores
de várias áreas planejam as aulas em conjunto. Fomentam independência
para pesquisar e colaboração. Não se põem à frente da classe a ministrar
intermináveis aulas expositivas, mas vão de mesa em mesa, resolvendo
dúvidas e renovando desafios. Especialistas de Singapura, Estados
Unidos, México, Espanha e Tailândia já agendaram visitas à escola
Kasavuori para conhecer o modelo que, a partir do próximo ano, fará
parte do currículo mínimo obrigatório da Finlândia.
De certa maneira, as inovações finlandesas são um reencontro com um
passado glorioso. Na Atenas clássica, o ensino era baseado em desafios
que demandavam várias áreas do saber para ser solucionados. O mentor
respondia a uma pergunta com outra mais difícil, um problema levava ao
seguinte, em um voo pela razão balizado pelo rigor da geometria e pela
lógica, mas impulsionado pelas asas da poesia. A realidade é
multidisciplinar e requer diversos domínios para ser abarcada em toda a
sua complexidade. Os gregos sabiam disso. Os finlandeses estão provando
que essa e outras abordagens do passado, embora esquecidas no tempo,
nunca perderam seu valor. Há um século, o filósofo e matemático inglês
Alfred North Whitehead escreveu The Aims of Education ("Os
objetivos da educação"), um libelo contra o academicismo e a
compartimentação dos campos do saber. "Nas nossas escolas a contradição é
vista como uma derrota, quando deveria ser o primeiro passo rumo ao
conhecimento real." Whitehead preconizava também o trabalho cooperativo.
Encontra-se muito das ideias dele na adaptação das escolas da Finlândia
à dinâmica do mundo atual e às exigências da economia globalizada e
conectada.
Na década de 70, a Finlândia decidiu promover uma virada crucial no
ensino. Era um tempo em que metade da população ainda vivia na zona
rural e a economia dependia das flutuações do preço da madeira - passado
que soa remoto diante do atual desempenho do país na corrida global: a
chamada "terra dos 1 000 lagos" (exatamente 187 000) e dos 2 milhões de
saunas (uma para cada 2,7 habitantes) desponta entre os cinco primeiros
nos rankings mundiais de competitividade, inovação e transparência. Sua
capital lidera o mais recente teste de honestidade da revista Reader's Digest,
baseado em quantas de doze carteiras com 50 dólares deixadas em
lugares-chave pela revista foram entregues de volta a seus donos ou à
polícia. Em Helsinque, onze das doze carteiras foram devolvidas - no Rio
de Janeiro, quatro, o mesmo número de Zurique.
Não espere encontrar na Finlândia a rigidez típica de outros campeões
do ensino, como Coreia do Sul ou China. Enquanto a palavra de ordem na
Ásia é estudar noite e dia, nessas bandas da Escandinávia a rotina
escolar é mais suave, com jornadas de cinco horas e lição na medida
certa para sobrar tempo para "relaxar" - esse é o verbo de que os
finlandeses gostam. Que não se confunda isso com indisciplina ou pouca
ambição. Foi só a Finlândia perder posições no ranking da OCDE (ficou em
sexto lugar no último) e o exame nacional mostrar certa queda para soar
o alerta e o rumo ser corrigido. Os novos tempos são de construção do
conhecimento em rede, uns colaborando com os outros, como nas rodas
acadêmicas. Também é visível a mudança na condução da aula pelo
professor, que às vezes nem mesa tem; a ideia é que ele palestre menos e
guie mais o voo dos estudantes. Os mestres não são coadjuvantes, como
em muitas experiências que se autointitulam inovadoras, mas o centro de
uma reviravolta sustentada em delicado equilíbrio. "O segredo está em
não achar que flexibilidade é o mesmo que anarquia", pondera a doutora
em educação Kristiina Kumpulainen, da Universidade de Helsinque.
A tarefa de saber qual conteúdo deve sobreviver à afiada peneira
deste século não é simples, mas vem sendo testada com sinais de sucesso,
e não só na Finlândia. Também na vanguarda do ensino, o distrito de
Colúmbia Britânica, no Canadá, encontra-se em pleno processo de separar o
descartável do essencial. "Com uma grade de matérias tão pesada, as
crianças não estavam aprendendo a pensar", reconhece Rod Allen,
envolvido na missão de reescrever o currículo. Os canadenses continuarão
a estudar os fundamentos da democracia grega e por que todos os
caminhos levavam a Roma, mas não precisarão mais "sobrevoar", como diz
Allen, todas as civilizações da Antiguidade. "No lugar de cinquenta
tópicos mal absorvidos, vamos agrupá-los em dez ou doze grandes áreas,
enfatizando os conceitos realmente valiosos", explica ele, que ainda
esclarece: datas, pessoas e eventos importantes seguem firmes na
cartilha. O Japão percorre trilha semelhante. Enxugou em 30% seu
currículo para ceder espaço às habilidades tão em voga. Não há nada de
modismo aí. Os japoneses perceberam que os postos de trabalho que
envolvem atividades rotineiras e baseadas em um único tipo de
conhecimento estão sendo varridos por aqueles movidos a desafios mais
imprevisíveis e complexos, que exigem flexibilidade de pensamento e de
postura. Mas em um ponto ninguém mexe: ler um livro por semana foi, é e
sempre será sagrado.
Há décadas se fala da importância de ensinar habilidades
comportamentais, ou socioemocionais, como se diz no meio, como
persistência e autodisciplina. Há décadas também elas vêm sendo
subestimadas nas escolas, ainda que, nos anos 80, o americano James
Heckman, prêmio Nobel de Economia, tenha demonstrado em pesquisas que
são tão ou mais determinantes para o sucesso futuro do que as
tradicionais matérias - e, sim, podem ser incentivadas. Mas, à medida
que a cadeia produtiva muda sua lógica, exigindo cada vez mais
capacidade de resolução de problemas e de adaptação em todos os níveis, o
alerta de Heckman se faz reverberar na educação. Um estudo do Instituto
Ayrton Senna reforça as palavras do Nobel trazendo os números à
realidade brasileira: alunos mais perseverantes e organizados aprendem
em um ano letivo cerca de um terço mais em matemática do que os outros; a
abertura ao novo e a coragem de empreender e errar produzem o mesmo
efeito positivo em língua portuguesa. "Existe o princípio geral de que
só o que dá para medir tem valor. Pois já conhecemos bem o peso dessas
habilidades que soam tão abstratas", observa Oliver John, professor da
Universidade da Califórnia, em Berkeley, e consultor da OCDE no projeto
de criar um termômetro universal para aferi-las.
E o Brasil nisso? Bem, enquanto países como Finlândia e Austrália,
outro caso de sucesso, revisam seu currículo a cada dez anos e a Coreia
do Sul já cravou a sétima edição do seu, o Brasil não tem nenhum. Isso
mesmo: aterrissamos no século XXI sem um consenso nacional sobre o que o
aluno deve aprender a cada ano em cada disciplina. A principal razão
para tão profundo atraso é de cunho ideológico. Uma turma de educadores
ainda acha que um script com objetivos e metas de aprendizado em comum
engessaria a liberdade de lecionar e daria as costas às diferenças.
"Confundem até hoje estrutura com camisa de força", diz Denis Mizne,
diretor executivo da Fundação Lemann e integrante de um grupo de
especialistas que debatem o teor do currículo brasileiro por vir.
Previsão: 2016.
Envolvido na confecção desse currículo, o ministro da Secretaria de
Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, fez uma ala de pensadores
tremular com suas afirmações a propósito do tema. Disse o ministro,
acertadamente: "A tradição no Brasil é de enciclopedismo raso". A
proposta conduzida por ele, portanto, mira diminuir quantidade em prol
de profundidade, mas não só isso: "Desenvolver competências deve ser a
principal missão da escola". Ele se refere, por exemplo, a saber ler e
interpretar e afiar o raciocínio lógico. O que tirou o sono de
especialistas foi a aparente contraposição que Unger fez entre conteúdos
e competências (justamente relacionadas à utilização do conhecimento
acumulado), como se fossem excludentes. "Não há conteúdos consagrados
nem obrigatórios, sobretudo nos anos escolares mais avançados", defendeu
ele a VEJA. "Também não podemos produzir um currículo engessado, que
cale o experimentalismo vigoroso", foi além. Mas garantiu: a ideia é ter
metas e orientações para docentes. A ver. Como professores que tropeçam
no básico darão conta da transição para algo que só agora países bem
mais evoluídos no ensino estão fazendo?
Muitas ressalvas cabem na comparação entre Brasil e Finlândia - a
começar pela população: os finlandeses são 5,5 milhões com cultura
homogênea e pouca disparidade de renda; já nós, 200 milhões com todo
tipo de diversidade. Também eles não têm o mau hábito de mudar o curso
da educação a cada troca de governo. A Finlândia adota um sistema
parlamentarista com presidente da República que favorece coalizões entre
quase todos os partidos. Tal estabilidade política contribuiu para a
implantação de um sistema em que 99% das escolas são públicas e
igualmente boas, segundo notou a OCDE. Tamanho é o valor que se dá à
sala de aula que, mesmo na universidade, ninguém desembolsa um tostão.
Ao contrário: os alunos ganham até bolsas para arcar com moradia. "Não
precisamos mudar de cidade atrás de um bom ensino porque ele está por
toda parte", conta a enfermeira Kirsi Ojala-Kinnunen, 42 anos, mãe de
três filhos e uma entre os 35 000 habitantes da bucólica Tuusula, onde
vive em uma casa de madeira típica do pós-II Guerra, com o conforto que
todas essas residências têm - sauna para enfrentar o frio e as noites
sem fim. Olhar para eles pode ajudar o Brasil a deixar a própria zona
glacial: a dos últimos do mundo na educação.
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